domingo, 23 de septiembre de 2018

LECTURA: "A FILHA DO POVO" (BERNARDINO PINHEIRO (AÑO 1862)).

                                                           A FILHA DO POVO 

                                                                           I 

       Bellos arraiaes d'Almada ! Sois em noites estivas, quando não sopra com violencia a ventania do norte, o regosijo d'aquellas formosas filhas da margem esquerda do Tejo. 

Formosas sim, que ainda as não vi tanto e em tão grande numero em outro algum logar !

 E ali perpassam, á palida luz das lanternas festivaes, dezenas e dezenas d'ellas; todas moças, alegres, lindas e trajadas com simples e encantadora elegancia. 

   São reuniões aquellas, como de familia: todos se conhecem, faliam e traiam intimamente.

 É vasto o salão, e sublima-lhe o tecto a abobada amplíssima do céo; ora escuro e recamado de estrellas rutilantes, ora azul e explendidamente illuminado pelo brilho suavíssimo da lua. 

Amo os arraiaes d' Almada ! Gosto de ver todas aquellas raparigas, pavoneando-se ao mesmo tempo modestas e vaidosas, gosando do ar puríssimo da villa, embriagando-se no doce amor da juventude. 

   Pois não sabeis, lindas, que o mesmo solo, que tão descuidada mente pizaes, foi, ha mais de tres seculos e meio, scenario de amores tão puros como os vossos; porém mais ardentes e mais contrariados do que são por certo os que boje tendes. 

Era por uma noite de lua cheia do mez de agosto de 1486. 


Nunca de nuvens fôra tão limpo o céo, nem tão luzido o luar; similhava uma noite dos tropicos, em que a rainha aerea brilha mais do que o sol de inverno cm terras europeas. 

N'aquelle pequeno adro do convento de S. Paulo dos dominicos de Almada batia a lua em chapa. 

De junto á cruz de pedra, que se levanta no meio, via-se ao lado a simples casa religiosa; lá ao longe a linha escura e longa das casarias de Lisboa; mais longe ainda a serra de Palmella; mais proximo um mar de prata, que scintillava e' bramia, correndo para o oceano; e, então, mui perto já, mas na frente e do outro lado, o castello d'Almada e as habitações da villa. 

E era uma noite linda, e, para mais augmentar o encanto da natureza, o orgão da egreja e o cantar dos frades vinham povoar o es· paço com as harmonias magestosas dos canticos sagrados. lia nas mesmas fórmas externas do catholicisrno uma poesia divi· na, que as mais das vezes dá uncção e sublimidade a tudo. Junlo á cruz estaba sentada uma esbelta menina, vestida de branco, e preso na cabeça um véo preto que lhe descaia donairoso sobre as costas. 

A alvura do seu rosto quasi que excedia á do vestido; não se divisava porém se eram bsllas as feições, porque estava como occulta na penumbra do cruzeiro.

 De quando em quando voltava a fronte na direção da porta do templo. 

Havia alguns minutos que assim estava como em expectativa, quando saiu da igreja um moço cavalleiro, muito conhecido n'aquelles sitios, D. Alvaro de Sotto Maior; nobre de nascimento e mais nobre ainda pela gentileza do seu porte, pelo seu valor muitas vezes provado, pelos sentimentos elevados de sua alma.

 -Então rezaste, Alvaro'?-disse com voz melodiosa o vulto branco, levantando-se e indo para o mancebo. 

- Rezei ! Sinto n'alma doce consolação, prazer ineffavel, quando ajoelho ante a imagem da Santa Virgem e lhe peço por ti, Maria; e lhe imploro que te dê felicidade junto de mim, que t'a conceda por intermedio meu.

 - Nem de ti me póde vir senão felicidade, meu Alvaro. Mas senti agora grande pena de não te acompanhar á egreja.

 -Pezou-me tambem a mim ... Que pela nave do templo havia apeuas tres ou quatro vultos de devotos, bons velhos, affeiçoados nossos; mas o cõro estava cheio de frades ... se te vissem entrar comigo sósinha, e a estas horas, o que diriam ámanhã por toda a villa em suas murmurações? 

- Foi melhor assim. Eu esperei, e tu foste prostarte junto do altar illuminado da Mãe de Deus. -Já que nos roubaram a nossa imagem de tanta uncção e milagre ...

 - Olvida essa que te fará entristecer ... a da egreja, com o seu rosto entre as luzes e as flôres, brilhava com um fulgor mysterioso que me penetrou no coração.Olha, Maria, nós os homens, moços ainda sobretudo, levados, como de roldão, entre o ruido e paixões que nos apresenta o mundo, que nos entreteem e occupam inteiramente, olvidamos um pouco, olvidamos demasiado aquella devoção, aquella fé, que a mãe o a família nos infundem cm creança. Eu sou como todos. Esqueci o nome dos innurneraveis santos a que minha mãe de joelhos e mãos postas me fazia rezar á noute, esqueci aquellas orações, cujas palavras, machinalmente, repetia sem entender. Hoje apenas sei rezar á Virgem, e de todas aquellas preços só gravada em meu coração ficou a Ave Maria.

 -E essa basta se a disseres com verdadeira fé. 

- Digo. Sinto-me sempre outro, mais forte, invulneravel quasi depois de implorar o soccorro da Virgem: tento as maiores emprezas, sou temerario mesmo. Tenho inabalavel crença de que ha de chamar em meu auxilio a protecção de Deus. No céo, entre os santos, não tenho, nem quero senão a Ella ; na terra, só a ti possuo, e só te quero a ti, Maria. Tu que apesar de pobre e filha do povo, és mais, vales muito mais do que essas da minha classe, que tumulluam nos salões de D. João II; tu, que me tens guiado na quadra procellosa, que vae passando para os. da minha stirpe, que me tens alfastado, com o teu amor, d'essas conspirações todas infelizes e sanguinarias .dos nobres contra o poder fatal da corôa, que nos vae cerceando os privilegios, mas engrandecendo com elles a nação; tu que me ensinaste, mais pelo coraçllo do que pela palavra, a pospôr o interesse individual e da minha classe ao hem geral da patria portugueza; tu, pois, que te abandonaste a mim de corpo e alma, que inteiramente confiaste na minha honra; tu serás minha esposa. 

-Vossa esposa nunca! - Gritou um vulto negro que se levantou de traz do parapeito que rodeia o adro. - Nunca! pois que o filho de D. Pedro AIvaro de Sotto-Maior, visconde tle Tuy e conde de Caminha, jámais deshonrará o seu nome illustre ha quatro seculos, alliando-se com a filha de um villão !.. . 

-Villão ruim de sangue e sentimentos é esse que me falia! Clamou o cavalleiro, endireitando-se para o vulto. 

- Quem vos falla, senhor D. Alvaro, é João Dagualda, escudeiro, que foi, de vosso honrado pai, que viveu vinte annos no seio da vossa família, que foi estimado por todos os vossos, e que muitas vezes por elles arriscou a vida. 

- Menos quando na batalha de Touro deixou meu pae no campo estendido entre os feridos, e se passou para as bandeiras de Izabel e de Fernando; nem quando acintosameote anda a buscar ensejo de insultar e affrontar as pessoas que estimo e que respeito. 

- Enganaram vossa mercê; foi o senhor conde quem me enviou a Izabel de Castella; o senhor conde, que depois me recommendou á hora da morte, que vos advertisse da honra do seu nome, para que o não conspurcasseis com o da família d'essa mulher, que, apesar de ser então ainda quasi infante, já amareis, com o d'essa familia que me tem calumniado, que vos tem feito esquecer a vossa verdadeira patria e os interesses, isenções e tymbres da classe a que pertenceis, d'essa família vil e refalsada ... 

Ao escutar estas palavras, D. Alvaro estremeceu, levantou rapidamente uma vara llexivel, como um vime, que tinha na detra, e verberou com ella o rosto de João Dagualda. 

Travou este de um punhal que trazia no cinto; mas, vendo Sotto Maior levar a mão á espada, saltou sobre o parapeito e d'ahi para as terras contiguas, bradando :

 -Tu me pagarás, Alvaro de Caminha!

 E desappareceu. 

A menina de branco tinha caido quasi desfallecida sobre os degráos do cruzeiro. O cavalheiro enclinou-se para ella, dizendo: 

--Perdoa, Maria!
 - A Virgem sabe se não lhe perdoei já ! - disse meiga, mas dolorosamente a donzella. Porém, voltemos para casa; o luar, que me parecia tão lindo ha pouco, enegrece-me agora o coração. 

                                                                      II

Era n'uma casa pequena e rustica d' Almada, debruçada de sobre a montanha para o mar, como velha á borda de um regato, scismando nos seus amores de rapariga. 

Num pequeno aposento, notavel só pela vista magnificente que tinha a janella, e pelo aceio que n'elle reinava, estavam sentados Maria e AIvaro em pratica alfectuosa e intima e com as mãos reciprocamente dadas.

Mfaria recebêra a educação mais esmerada d'aquolla época. 

Era de uma formosura admiravel sem ser apparatosa; despercebida a distancia, maravilhava ao contemplar-se de perto. Tinha o rosto e as mãos de uma grande alvura, não d'aquelle branco do leite igual e sem brilho; mas sim dó alvo resplandecente da perola, que não cança, e até regosija a vista. O cabello farto de um louro escuro, entran-çado primorosamente, moldurava-lhe o rosto; as feições todas eram regularíssimas e bellas, e azues lhe brilhavam os olhos . 

 N'estes e em toda ella possuía a serenidade a aparente, que realça a modestia e infunde maior paixão e mais respeitosa, das mulheres do norte. Os olhos então tinham uma luz meiga de ternura e de bondade que lhe dava ares de uma santa. Julgar-se-hia por um momento que a alma lhe remontava da terra, onde nada a prendia, e se elevava ao céo e perdia nas regiões bemaventuradas dos que estão coru Deus. Se então fatiava a voz, sempre suavíssima, tinha a doçura da flauta, ouvida ao longe em noite de luar e a uncção quasi divina da voz juvenil da virgem enlaçada ao orgão do mosteiro. 

Mas quando uma aura de amor ou d'outro sentimento grande vinha agitar aquelle regato puríssimo de seu viver, desapparecia inteiramente a serenidade, os olhos scintillavaru-lhe com uma luz resplandecente e vivíssima, e toda ella era amor, e paixão, e enthusiasmo e delírio ! Similhavam então as suas falias um hymno ruidoso e arrebatador, e levam-nos apoz si, inspirando-nos tudo quanto é difficil, ingente e sublime. Era o amor, a gloria, e a loucura que se personificavam n'ella para nos endoudecerem.

 Agora estava Maria n'aquella sua meiga serenidade habitual, mas que tinha hoje um toque mais fundo de melancholia e tristeza. 

-Tu és, Alvaro, - dizia ella meigamente - cavalleiro, nobre e filho de um grande de Hespanha e Portugal, como poderás jámais desposar-me a mim, filha do povo!. .. 
- Outr'ora, - continuou, animando-se um pouco,-tinha vaidade da minha condição, enobreciame o ser oriunda de populares, enlevava-me, ouvindo a meu decrepito avô repetir as orações com que elle e os outros procuradores dos povos tinham em côrtes, durante muitos annos, fulminado o orgulho, abatido o poder dos fidalgos. Iloje o amor que te consagro e esse desejo teu de o quereres santificar perante a egreja, o que cu nunca te pedi, mas que era, por certo, a maior ventura de minha vida, fazem com que rue lastime de não ter nascido nobre como tu, fazem com que eu renegue as crenças de meus paes, as crenças do povo.

 - Não penses tal, Maria ! a verdadeira nobreza, sobre tudo nas mulheres é a da alma, é a da virtude; e n'isso és tu mais nobre que rainha alguma, tu que és uma santa. 

-Santa ! - Santa sim, erguida e venerada no altar de meu coração !

 - A virtude minha é só devida á generosidade e elevação tuas, Alvaro. 

 -Á honra propria de todo o homem honrado, talvez; e deixa-me ter d'isso orgulho, Maria. Mas, se tal não fosse, não acreditava no teu amor. Já t'o hei dito, e repito-o agora bem do intimo da alma; não creio que a mulher, amando verdadeiramente, amando ardentemente um homem, lhe possa resistir. Nas mulheres é ludo o cora· ção, quando elle resiste ao amor é porque o não sente devéras. Da parle do homem, que tem brio, é que está, é que deve estar a sufficiente força para refrear a sua paixão e a da mulher que estremece, pois não deve querer precipitai-a n'um abysmo de vergonha, não deve querer arrebatar-lhe a virtude, seu atavio principal. Quantas vezes um homem, gasto dos prazeres, simulando um sentimento que não tem, vae com palavras sonorosas e requebros estudados, desvairar o espírito, já de si ardente, de uma pobre menina e arrostal-a â perdição; é esse um vil, que a sociedade a ser justa, devia para toda a vida marcar de ignomínia !

 Deixára-se Maria suavemente descair, ajoelhára ante o 'cavalleiro, e beijando a sua mão delicada, alva, quasi feminil, disse: 

-Tu és bom, meu Alvaro !

 -Toda a bondade que tenha de ti procede, minha esposa; redarguiu elle, tomando-lhe nas mãos a cabeça, e aos labios achegando-a com amor, ensinou-rn'a a tua doce voz, inspiram-me esses teus olhos do céo. 

Um bater apressado á porta do aposento fez levantar rapidamente Maria, que foi abrir. A menina estremeceu ao dar de rosto com sua mãe pallida e assustada. 

- Que é, disse ella?

 -Senhor D. Alvaro, respondeu a boa senhora com voz tremula, um cavalleiro dos ginetes de Fernão Martins de Mascarenhas diz que el-rei vos ordena o acompanheis a Lisboa. 

Sotto-Maior empallideceu tambem; é que uma ordem d'aquellas a um nobre, nos primeiros annos do reinado de D. João II podia, mui facilmente, ser uma sentença de morte. 

Os tres olharam-se reciprocamente, não ousando articular um som. 

Sem animo, vacillante, quasi desfállecida, apoiou-se Maria a uma cadeira para não cair. 

Sua mãe foi a primeira que fatiou: 

-Senhor D. Alvaro -disse com voz sumida -fugi ! Uma grande tristeza, como terror do foturo, me ennegrece o corarão. Chegastes ha pouco, de Castella, e sabeis, que se diz por cá tramar a rainha lzabel com os nobres de Portugal contra a corôa de D. João II. Talvez alguem, que vos queira mal, fosse calumniar-vos junto de el-rei. É tão difficil ao bom provar a sua innocencia, quanto é facil ao malvado fazer uma accusação. Livre, menos custoso será a vossa mercê convencer sua alteza de que foi enganado, preso, nem a justiça vos dará para isso tempo. Fugi ! Sai pela porta do jardim, e breve estareis fóra da villa. Tomae na Amora um cavallo, ide a Setubal e lá embarcae para Castella ou para França. Acreditae-me, senhor, não arrosteis com a sanha terrível do homem, que assassinou o duque de Vizeu. 

 - Julgo que tendes razão ... Digo-vos em comsciencia, e por alma de minha santa mãe vos affirmo, que jámais tramei contra o rei de Portugal !. .. mas esta verdade mais difficilmente do que em parte alguma a provarei no fundo de um carcere !.. Que dizes, Maria ? ha no teu coração de amante, que tantas vezes a presciencia illumina, alguma voz a aconselharme que me ausente da côrte? 

- Não ! - respondeu em tom seguro, scintillando-lhe os olhos, colorindo-se-lhe o rosto, alteando-se na sua figura esbelta. - Não ! que jámais diria a um homem que é nobre, nobre d'alma, que fugisse ante a justiça da minha patria. El-rei O. João é o amigo do povo, tu nunca fizeste mal a este, elle não te fará mal a ti. Adevinha-me o coração que tens de arrostar um grande perigo. Mas vae, que o exige a honra ! Contra a calumnia prevalecerá a innocencia: el-rei é justiceiro, e a Virgem será por nós !.

 E Maria declamou isto com tal enthusiasmo no gesto, com tanto fulgor nos olhos, com tamanha paixão na voz que D. Alvaro, arrebatado, tomou-a nos braços, estreitou-a ao seu coração, beijou-a na fronte e disse-lhe, alTastando-se: 

- És tu, filha do povo, que ensinas ao nobre a verdadeira nobreza ! Adeus ! Reza por mim á Ilainha do Céo ! 


                                                                         III 

No longo, obscuro e tormentoso periodo de quasi dez seculos que fórma a idade média, constantemente, se pelejou uma lucta encarniçada entre os varios elementos constitutivos da sociedade europea.

 O feudalismo, a theocracia, a democracia e a realeza, tomando variadas fórmas, debateram-se, triumpharam, successiva e momentaneamente wis sobre os outros, e desfalleceram para tornar a surgir, triumpbar e desfallecer.

 Estas tentativas de organisação social, todas grandiosas e mais ou menos fundadas no espírito do homem e nas circunstancias do tem· po, abortaram, ora pelo seu exclusivismo, ora pela extincção do proprio fundamento, ora, finalmente, porque obstavam á civilisação que do reciproco attrito de todas começava a raiar. 

Áquem do facto, momentoso por si e sobre tudo pelos seus effeitós, que separa os tempos modernos dos da meia idade, a lucta continuou até hoje ; mas em períodos mais vastos, mais definidos, ou antes com luz mais intensa sobre elles, que n'ol-os deixa ver mais em relevo e cõres mais vivas. 

Pereceram quasi de todo já o feudalismo e a theocracia; os estremecimentos que, de quando em quando, ainda lhes senlimos são os arrancos do moribundo. Tentar dar-lhes vida é emprehender uma resurreição, o que só compete ao espírito de Deus e não ao do homem. Extinguir-lhes antes os raros bafejos d'ella que ainda conservarem : é poupar-lhes soffrimentos, é alliviar a humanidade d'esse espectaculo de receios e dôr. 

Agora luctam ainda, n'um ou n'outro ponto, a realeza, que julga vigorosos os moribundos e por elles illudida, pois os sente ainda estrebuxar por toda a parte, e a democrncia que aspira á liberdade e ao progresso. Ba de finalisar-se esta peleja, e hão de os contendores, dando um abraço de fraternidade e paz, conhecerem que está no seu amor reciproco o conseguimento da pacificação e do mais facil erapido desenvolvimento da sociedade humana. 

Ora ao salr da idade média, na segunda metade do seculo quinze, a realeza alliara·se com o povo para destruir o seu maior inimigo, aquelle que mais de perto a offuscava e affrontava.

 Os dois alliados davam então no feudalismo o mais terrivel golpe, o que o prostraria no solo, e de que não mais se havia de levantar.

 Predominava este facto por toda a Europa. Henrique 'VII na Inglaterra, Maximiliano na Atlemanha, Luiz XI na França, Fernando e lzabel na Hespanha e João nem Portugal eram os athletas reaes n'aquella peleja, em que os populares foram illudidos e espoliados, e de que só victoriosos e preponderantes sairam os sceptros.

 Foi D. João u dos mais terriveis contendores: o seu panegyrisla, sem querer mesmo, retingitt-lhe de sangue, assombreou-lhe de terror muitas paginas da Chronica. 

Com sua vontade ferrea immolou sem piedade os nobres mais altivos e poderosos que receiava lhe fizessem estremecer o throno.

 Atràvez dos seculos e das paginas da historia, ainda boje divisamos o pavor, que infundia na classe, por tão largo tempo, rival dos reis e oppressora dos povos, o olbar de João II. 

Não devem pois maravilhar as hesitações e receios do filho do conde de Caminha. Apenas chegado a Lisboa, viu elle quanto eram justas; prenderam·n'o e conduziram-o' o a um carcere do Limoeiro, já então convertido em prisão real. 

São passados quinze dias que ali jaz.

 Eil·o pallido, magro e enfraquecido; sentado junto de um bofete, n'uma cadeira d'espaldar de lavor simples. Á primeira vista não parece o mesmo; desfigurou-o a tortura, esse meio hediondo e cruel que a justiça antiga empregava para descobrir a verdade. Dilacerou-Jbe os membros, rasgou-lhe as carnes, infligiu-lhe as dõres mais vivas, e conseguiu apenas ouvir ao cavalleiro reiterados protestos de innocencia. 

Proximo a D. Alvaro, de joelhos, sobre um coxim de panno escuro, os cotovellos apoiados na cadeira e uma das mãos de Sotto Maior, meigamente, apertada entre as suas, está Maria, triste, mas acariciadora, empregando todo o amor e ternura que lhe transparecem nos olhos formosissimos em confortar o cavalleiro, em lhe inspirar resignação, em distrahil-o de seus dolorosos sofTrimentos do corpo e do espírito. 

Não foi possível retel-a na sua casa d' Almada; penetrou no paço quasi escusamente, lançou-se aos pés dó monarcha e disse-lhe que a neta de um dos mais honrados procuradores do povo, durante os tres reinados anteriores, lhe rogava ir encerrar-se na prisão com o misero cavalleiro seu noivo. Tantas foram as supplicas e as lagrimas que se apiedou o rei... é que tinha coração para os infelizes o filho de Affonso v. 

Um dos letrados da casa da Supplicação, com o seu rosto pallido e a sua garnacha escura, estava defronte dos dois amantes. 

Eram os jurisconsultos, que ajudavam e impelliam os reis na sua obra; as leis da antiga e da moderna Roma serviam-lhes de aríete para destruirem a nobreza e enthronisarem o absolutismo. 

- Senhor D. Alvaro, dizia o doutor, n'esla nobilíssima, porém mais que todas pungidora missão de administrar a justiça, jámais me hei sentido afflicto, como no caso que vos diz respeito. Foram empregados debalde todos os meios para descobrir se vós ereis ou não conspirador. João Dagualda porfia em accusar-vos como tal. As vossas relações com o duque de Vizeu e o bispo de Evora, com D. Fernando de Menezes e D. Pedro de Athaide, já todos mortos por justiça de el-rei, - e aqui o doutor fez uma profunda mesura, - e principalmente a vossa ida a Castella são as unicas provas de que tinheis o intento, que vos attribuem, de matar o senhor D. Joao. e de novo curvou a fronte,-rei pelo voto dos concelhos, rei principalmente por direito divino. 

- Já a isso respondi cabalmente, doutor, disse o cavalleiro com voz desfallecida. Tinha relações com esses infelizes que Deus tem, porque eram da minha classe, porque estivera com elles nos campos de batalha, porque os encontrava todos os dias nos paços de el-rei. Fui a Castella, porque tenho lá casa e parentes, porque negocios de familia me chamavam lá.

 - lloje assim o creio, senhor cavalleiro; os juízes porém da Supplicação não estão conformes ainda todos, e sua alteza o senhor D. João II,-outra mesuras-a quem sabeis, todos estes feitos são presentes, e de cuja vontade depende sobre tudo a sentença, porque a lei & o querer de Deus; e o querer de DEUS é o querer do principe, está de tal modo decidido a manter como lhe compete, o podeR da corõa. e a defender este reino contra os conloios de Castella, que, sinceramente, muito vos receio pela vida. 

Maria estremeceu, e o seu alvo rosto tinguiu-se d'aquella cór amarello-escuro que dá a melancholia profunda e prolongada ou o medo grande. A D. Alvaro não se lhe agitou um musculo, e respondeu no seu primeiro tom:

 - Faça-se a vontade da Virgem Mãi de Deus !

 -E depois nós os homens de justiça, continuou o doutor, não sabemos explicar aquella contumacia de João Dagualda, antigo servidor dos vossos, em accusar-vos como traidor, e em querer mal á bella e santa menina que ahi tendes. O harerdes-lbe fustigado as faces não é sufficiente causa. para n'um homem da sua condição arreigar tama· nho odio. De provardes ou não sua calumnia suspensa vos está a vida. E como havemos declarai-a tal não o sabemos nós. 

-Sei eu ! disse Maria, -levantando·se de um salto, as faces affogueadas, os olhos faiscantes, -sei-o eu, e não o disse já, porque me vexava, porque Alvaro ordenou-me que vol-o occultasse, porque pensei que ereis mais providentes, julguei que a cegueira da justiça era em quanto á condição dos réos para a todos applicar igualmente a lei, e que lhe era facil, na sua perspicacia e rectidão, descriminar o bem do mal, o innocente do criminoso, descobrir com todos os seus immensos meios de sciencia e dinheiro aonde a verdade, aonde a calumnia! Mas enganei-me, e, visto que a vida de Alvaro depende d'essa revelação, hei de desobedecer-lhe, tudo direi a el-rei; direi por que o servo abjecto e vil me quer mal, e como sabe, que, se Alvaro morrer, eu morrerei tambem, por isso quer levai-o ao cadafalso. Mas -não ha de ir. O cavalleiro e eu, - disse com voz inspirada, - temos por egide a protecção da Virgem; disseram-me que el-rei é tambem devoto da Mãi de Deus: irei fallar-lhe em seu nome, e em nome de todo o povo de Portugal; irei dizer-lhe que o sangue do innocente, espadanando-lhe para a corôa, lhe ha de marear o brilho, mostrarlhe-bei que os direitos dos populares não se sustentam, sacrificandolha o justo, dir-lhe-hei que a independencia portugueza tem por si o coração de todos os portuguezes, e que nada podem as ambições de Isabel, a castelhana, contra um povo forte do seu direito; dir-lhehei finalmente, o que tiver sobre o coração ! Vinde pois, doutor ! levai-me aos paços do rei de Portugal, aos paços. d'aquelle que, segundo vós dizeis, administra n'esta nossa terra a justiça de Deus !

 E radiante de enthusiasmo, de inspiração, de insania talvez, Maria travou do jurisconsulto e lêvou·o apoz si para fóra do carcere.

                                                                             IV

Ás mesmas horas, pouco distante, nos paços d' Alcaçova, como o dia fôra abrasador, D. João II e alguns fidalgos e jurisconsultos passeavam n,uma esplanada, que dominava a cidade e o Tejo. 

Eram varios os grupos, e convergiam, como de rasão, as attenções de todos para aquelle onde estava el-rei, composto de pessoas mais distinctas pelos seus serviços e fidelidade á corôa, do que pelos seus brasões e nascimento. Ali se viam Diogo d'Azambuja, que as navegações e guerras haviam tornado manco e velho! D. Diogo d' Almeida, o amigo d'infancia do rei e tão feliz nas expedições d' Africa; Ayres da Silva e Antão de Faria, seus camareiros e privados; os doutores Ruy da Graan, depois compilador das Ordenações Manoelinas, e Diogo Pinheiro, elevado a bispo do Funchal, e alguns outros, cujos nomes as chronicas do tempo nos memoram hoje. 

- Sabei, senhores, - disse, em voz mais alta que até ali, el-rei, parando e sendo em breve rodeado por todos quantos passeavam na esplanada, - sabei que na ultima jornada que fizemos d'Evora para Estremoz, João Alvares, o Gato, cavalleiro da nossa real casa, por ser grande pensador e concertador de cavallos, indo, como vistes, mui bem posto em formoso ginete, seguido de escudeiros e creados, topou com um almocreve, que, vergado pela miseria e pelos annos, levava de feira em feira as suas mulas carregadas. Saudou-o, respeitoso o ancião; mas o cavalleiro João Gato, voltou para o lado o rosto e passou ávante sem lhe dizer palavra. Reconhecêra no pobre almocreve o seu velho pae ! 

Todos em torno do rei, mas pela maior parte affectadamente, fizeram um gesto de indignação.

 D. João II continuou : 

- Nunca os titulos de nobreza, que eu dê, hão de legitimar, nem desculpar ingratidões e descortezias d'estas. Visto que João Alvares despresa seu pae, e, sendo rico, o não tira d'aquella vida e lhe faz bem, é um homem vil e indigno de pessoa alguma se fiar n,elle. Ide pois, Antão de Faria, dizer-lhe isto, e que se retire da côrte e não mais torne a apparecer ante mim. Ao pronunciar estas palavras o rei fez um gesto de ira, e tanto esta se lhe pintou no rosto, que amedrontou a muitos dos fidalgos. Antão de Faria saiu immediatamente da esplanada para cumprir a ordem real, e tudo por algum tempo ficou silencioso. 

Ainda muitos rostos estavam vollados para o lado, onde desapparecêra o camareiro, quando assomou á entrada um vulto branco de mulher e uma garnacha triste de letrado. 

Havia muito que se escondêra no horisonte o sol, e começava a noite a assombrear a terra; a figura pois alva e erecta de Maria similhou repentinamente, n'aquelle abalo dos espíritos, uma phantastica apparição. 

Rapida, a fronte levantada e magestosa caminhou a menina para D. João que a olhava admirado. 

- Senhor rei de Portugal, - disse com voz segura ao chegar perto e ajoelhando, - jaz em prisão um innocente, que os vossos juízes tem torturado cruelmente para se confessar criminoso. Deve á firmeza de seu espírito e rectidão de sua alma o ter podido até hoje resistir a tão barbaro tratamento. Um homem calumniador e infame o accusou de traidor, quiz fazer de vossa alteza e de vossos tribunaes de justiça instrumentos de sua vingança. Rogo-vos, senhor, pela Virgem Mãe de Cbristo, que tanto veneraes, o examinardes, altenta e desapaixonadamente, este caso, e haveis de conhecer que AIvaro de Solto-Maior está puro da culpa que lhe altribuem, e que foi sempre, e sempre será servidor leal vosso e do vosso reino.

 -Acabo de punir um homem por despresar o pae, não posso perdoar a outro que atraiçoar a patria; - respondeu o monarcha brandamente. -Temos examinado e examinaremos ainda o processo d'esse homem, que tanto vos interessa. Se estiver innocente dar-lhe-hei a liberdade, e será punido, devidamente, o calumniador; mas se fôr convencido de crime, desde já vos digo, senhora, que são debalde snpplicas e rogos; não posso perdoar-lhe; 
ser-lhe-ha infligida a pena dos traidores. 

- Só vos peço justiça, real senhor! -porém, ameigando mais a voz já de lagrimas, e estendendo supplicante as mãos para D. João II continuou: - Confrontae-me com o servo desleal e máo, senhor; só eu conheço o fio da sua trama horrivel, que a prevalecer, entregará ao algoz o justo, e fará exultar o criminoso. Isto rogo a vossa alteza pela Santa Virgem, e pelas chagas divinas de Jesu-Christo !  

- São valiosos os prolectores e é o pedido justo; agora mesmo o cumprirei. Doutor,-disse para um dos jurisconsullos, - fazei que João Dagualda seja trazido á nossa presença.

 Tomou uma das mãos de Maria, levantou-a, e, seguido por todos, se dirigiu ao paço. 

Pouco depois estava D. João II n'uma vasta sala, tristonha e mal illuminada; recostado n'uma grande cadeira dourada, erguida sobre um estrado; alguns letrados sentados gravemente em escabellos razos de um e de outro lado; e Maria, desfallecida da exaltação em que estivera, jazia n'um cauto, alvejando-lhe as roupagens nas sombras do salão.

 Todas as vistas se dirigiam para ella ; contemplavam na formosa menina a estatuado pezar, do amor, da dedicação e da bondade ; e todos se commoviam, e todos receiavam por ella; pois a accusação era tal que, a não ser claramente contradictada, causaria por certo, a morte ao infeliz D. Alvaro. 

Depois de alguns instantes de silenciosa expectativa, franziu-se um reposteiro no fundo da sala; João Dagualda appareceu e caminhou, acanhadamenle, para onde estava el-rei. 

O galego, que o era, tinha a estatura baixa e magra, o craneo chato, o cabello castanho corredio e empastado, o rosto pardacento e uns olhos sem luz e que jámais se encontravam tranquillos e fixos. Repugnava o seu aspecto, e, se cada homem tem um animal irracional a que assimelhe, aquelle parecia-se com a osga.

 N'uma coisa porém se avantajava aos de sua condição: possuia linguagem e pronuncia raceis e correctas. 

- Homem, disse-lbe el-rei, nada se póde descobrir de verdadeiro na accusaçào que fizeste  contra teu amo; tens em risco a vida, porque mentir-me n'um caso d'estes, e contra pessoa a quem devias respeito e alfoição é crime de morte. 

- Mais effeiçào e respeito devia a vossa alteza e á verdade; sempre quiz muito, e muito honrei a família de Sotto-Maior; mas esse aspecto não me desvairava o espírito de tal modo, que o antepozesse á lealdade que vos devo, real senhor, desde que sou portuguez, desde que meu nobre amo, o visconde de Tuy foi pelo senhor D. Affonso v, nomeado conde de Caminha, e nobre de Portugal.

- Desconfio da tua lealdade, João, nada vejo a confirmal-a. 

- Pois não está em demasia provada a traição de D. Alvaro pelas suas intimas relações com os fidalgos portuguezes, que armavam insidias contra vossa alteza e contra o reino; pela sua ida precipitada a Castella e praticas que lá teve com os homisiados portaguezes; pelo seu viver retirado e occulto em Almada, com uma família de Condição tão inferior á sua? 

-Porém a mais honrada e leal d'aquella terra, onde jámais houve um traidor á sua patria. E ali tendes a confirmar meu dito aquella menina, symbolo tl'affabilidade terna e desprendimento de si. 

- Ah ! disse Dagualda, vendo-a e estremecendo, a barregan de D. Alvaro!

 - Cala-te homem! que se tornas a insultai-a, mando-te esquartejar no pelourinho da sua villa !.

E fusilou um relampago tal n'aquelle seu olhar, tantas vezes de sangue, que o miseravel empallideceu e recuou de terror. 

Commummente vivos, perspicazes e meigos tambem os olhos do rei, tingiam-se, quando se irava, de uns laivos de sangue, que infundiam pavor até nos seus mais privados cavalleiros. 

Houve um momento de silencio. Depois el-rei continuou jâ de animo sereno e a palavra animadora: 

- Vamos, Dagualda, ou tu ou D. Alvaro serão victimas da justiça, confirma se podes a tua accusação. 

- É assaz o que hei dito, senhor; mas para a mais incredula rasão, será manifestamente clara esta derradeira prova. É um escripto, -disse, - tirando um papel do peito, dirigido por D. AIvaro aos portuguezes, refugiados em Castella, em que promette assassinar-vos. 
Fui encarregado de o levar, mas não lh'o entreguei. Oiça vossa alteza.

 Leu: 

     «Remetto-vos da minha affeição um penhor de familia para mim valiosíssimo. 

        E nada mais recieis, que, para vos evitar novas affrontas, cravarlhe-hei um punhal no          coração.» 

                               «Alvaro» 

Enfüreceu-se terrível o rosto do monarcha, levantou-se e travou com violencia do papel. 

Leu, examinou a letra, conferiu-a elle e os jurisconsullos presentes com a d'outros escriptos da mão de Sotro Maior, e, não havia duvida alguma, era do cavalleiro !

 As alvas espaçosas dos olhos de J'oão II estavam de novo agora avermelhadas, e por entre os veios sanguineos scintilhava-lhe um fogo de morte. 

Dirigiu-se colerico a Maria. 

Esta ficára tão sem vida, depois da sua exaltação no carcere e na esplanada, que não attendera quasi ao que se lhe passava ao redor; apenas de leve lhe fulguraram os olhos ao escutar o escripto de D. AlvaroAttonita ouviu D. João bradar-lhe: 

- Erguei-vos, senhora ! e ide já dizer a esse fidalgo, que quer assassinar seu rei e entregar Portugal a Castella, que se prepare para morrer ámanhã ! Se duvidaes do seu crime, ahi tendes a prova !

 E arrojou-lhe aos pés o accusador escripto.

 Maria curvon-se, apanhou o papel, endireitou-se e leu-o com a suave tranquilidade que lhe era habitual. Quando tornou a olhar para D. João, este disse-lhe com tom determinado e irrevogavel: 

-Morrerá

- Quem 't - pergoatou ella docemente. 

-AIvaro de Sotto-Maior, senhora ! 

- AIvaro de Sotto-Maior ! ••• - Disse Maria ainda ~ sea tom de mansidão, e distrabida como se não fôra em Si. Mais despois de um ·momento de silencio, em que se lhe leu na tez a reftexio do cerbero, começou a sua transformação admiravel: as faces coloriram-se-lhe primeiro de leve, depois de carmim vivo; os olhos incendiaram-se-lhe de uma luz que resplandecia e offuscava ; engrandeceu-lhe a estatura, augmentando-se-lhe a belleza e a magestade ; ergueu apaixonadamente os braços a affastar o cabello que em partes lhê caia sobre o rosto, e com lyrismo e commoção na voz indiscriptiveis, clamou:

 - Não ha de morrer! que o não quer Deus, que o ñão quer :a lucida, santa e divina Estrella do christianismo ! ...elle é innocente, cavalleiro pondonoroso e leal á patria e ao rei, é amigo dó povo portuguez, digo-vo-lo eu, senhor, que sou filha do povo e potugueza!. Este papel é escripto por D. AIvaro, sim; mas em nada ameaça vossa authoridade real, e muito menos vossa preciosa vida. A quem promette cravar um punhal no coração, não é a vós, senhor; é áquelle miseravel que me tinha affrontado, e que elle não queria que me affrontasse mais. Dir-vos-hei tnudo. O servo abjecto e vil viu-me; quiz-me; cuspiu ante mim phrases immundas, cuja significação nh entendi bem. Apenas adevinbei, com asco, desejar aquelle homem desposar-me ante os altares de Christo, e dar-me por amante a D. Alvaro de Sotto-Maior. Foi ha um anno, meu pai ainda era vivo; ouvia as palavras do villão ruim, e expulsou-o, violentamente, da nossa casa. Desde então calumniava-me por toda a parte, e procurava occasiões de me injuriar e aos meus. D. Alvaro soube isto em Lisboa, e escre· veu-me este bilhete que o malvado tirou ao pagern que m'o levava. D'isto tereis, facilmente, a prova. O penhor de que reza a carta era uma pequenina e antiga imagem de Nossa Senhora de esmalte e ouro, que tem na pianha o brazão de D. Alvaro e o meu nome gravado em gothico ; roubou-a tambem ao pagem, e provavel é que a possua ainda. Examinai ; interrogai o portador; consultai testemunhas se quereis em Almada, e vereis como é esta a verdade. Vossa alteza, em nome de Deus, tem de ser em Portugal o juiz supremo ! e é em nome de Deus e de sua Mai Sanlissima, que vos emprazo, senhor rei, a punir aquelle homem que é vil e é calumniador, e a dar a liberdade e a rehabilitar a honra do outro, que é innocente, que é leal e que é justo! 

Tamanha era a convicção profunda, a verdade, o enthusiasmo e elevação que transpareciam da linguagem, do gesto e dos olhos illuminados de Maria n'aquella sublime allucinação, que D. João II commovido, e, o que é ainda mais admiravel n'elle, avassalado pela força magnetica da virgem, respondeu: 

  - Estou convencido, senhora !

 Depois, cominhando vagaroso e grave e de terrivel aspecto para João Dagualda disse:

 -És o mais ignobil miseravel que hei visto; apresenta já a imagem que roubaste! 

Regelavam de susto o coração de todos as palavras do rei: o corpo do escudeiro interiçou-se, levantaram-se-lhe hirtos os cabellos, e dsverdeou-se-lhe completamente o rosto. N'aquelle estado de terror não poude articular um som; apenas apertou com ancia o peito, como se occultasse ali coisa que lhe quizcesem tirar.

 Foi-lhe traidor o gesto.

 A um aceno do rei dois homens d'armas entraram, travaram d'elle, palparam-no e arrencaram-lhe do seio urna pequena imagem de esmalte e ouro. Tal como dissera a amante de Alvaro, na base, viam-se as armas dos Sotto-Maiores, as tres faxas enxequetadas de ouro e vermelho, e por baixo do escudo em caracteres gothicos a palavra Maria

Perfeita e linda era a imagem. El-rei examinou-a com piedade de christão e amor de artista. Depois entregou-a com respeito á joven, dizendo-lhe: 

- Agradecei-lhe, que vos salvou e a D. Alvaro.

 Maria recebeu-a transportada de alegria e terna gratidão. Ajoelhou, levantou-a em adoração, e exclamou compungida: 

- Oh ! Virgem Mãi Santíssima, vós lhe remunerastes hoje a sua devoção para comvosco!

O processo continuou ainda alguns dias; a perversidade de João Dagualda tornou-se evidentíssima, e teve o merecido castigo. D. Alvaro foi reintegrado em todas as suas honras e muito acrescentado n'ellas; e, finalmente, no dia 21 de setembro d'aquelle mesmo anno, desposou Maria, sendo padrinho do casamento el-rei D. João II. 

                           Coimbra, Março do 1862. 

                          BERNARDINO PINHEIRO. 

2 comentarios:

  1. Vaya. Que interesante y poética crónica. Don Alvaro tendría en ese entonces 17 años. (1486). Aponte dice que regresó tullido a la corte de Castilla, pues la Reina Isabel había intercedido por el ante el Rey de Portugal.

    El Happy End de esta cuento, casandose Don Alvaro con María, siendo el Rey Joao II padrino, me parece más un cuento de Disney que una verdad. Algo que me llama la atención es que el delator se refiere a él como Alvaro Camiña, y en efecto, hay varias referencias a un Alvaro Camiña en otros textos. Don Alvaro de Sotomayor murió asesinado en Valladolid en 1495, casado con Leonor Enríquez de Monroy, padres del matricida Pedro de Sotomayor.

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  2. Sí..curioso esta historia novelada..

    Lo que llama la atencion es que el autor se basa en hechos y fechas reales,otra cosa son los otros elementos,como el personaje de Maria,el tema del papel y crucifijo,etc..


    Es cierto que hay menciones en otras referencias como "Álvaro de Camiña" por esas fechas y lugares...¿seria el mismo?

    Hay un Álvaro de Camiña que fue por orden del Rey Portugues a buscar a Inglaterra al huido Lope de Alburquerque y Diego Mendez,criado de Lope.(es el mismo Diego Mendez amigo y conocedor de Cristobal Colon,el que dice que Colon era de Familia Noble).

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